quarta-feira, 28 de fevereiro de 2024

CAMINHO DE QUARESMA V

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Este tempo de Quaresma é sempre o tempo ideal para caminharmos num deserto isento de ruídos, de imagens, de impressões, de certezas adquiridas, enfim, de tudo aquilo que muitas vezes nos mascara para nós próprios.

É por isso um tempo de entrarmos em nós, de nos conhecermos verdadeiramente, de percebermos realmente como somos e como reagimos, e, como em tudo isso que somos ou aparentamos ser, discernir se temos ou não Cristo em nós, ou melhor, se somos verdadeiramente discípulos de Cristo.

Para isso é preciso um exercício de profunda humildade, porque para reconhecermos as nossas poucas ou muitas virtudes é fácil e aceitamo-las de imediato, mas já para reconhecer as nossas fraquezas, os nossos defeitos, a dificuldade é enorme e por vezes temos dificuldade para os aceitar e os combater.

E, obviamente, é sempre difícil sermos verdadeiros connosco próprios, sobretudo no que diz respeito ao que não está bem, ao que não é bom, por isso, nessa viagem pelo deserto que devemos fazer de nós próprios, não poderemos ir sós, mas sim acompanhados, ou melhor, envolvidos e deixando-nos conduzir pelo Espírito Santo.

E o Espírito Santo, com todo o Seu infinito amor, convencer-nos-á do pecado em nós (Jo 16, 8), mas ao mesmo tempo levar-nos-á ao arrependimento, à confissão, ao propósito de emenda.

Porque só convencidos do pecado, só convencidos de que realmente somos pecadores, não como um exercício de, digamos, autoflagelação, mas como um exercício de verdade, podemos perceber como o pecado nos aprisiona e, ao mesmo tempo, como Deus nos quer libertar de todo o mal, e assim, levar-nos ao arrependimento, para no Seu amor encontrarmos o verdadeiro amor e a salvação.

«Arrependei-vos e acreditai no Evangelho» Mc 1, 15

Como podemos nós arrepender-nos se não nos reconhecemos pecadores?
E se não nos arrependemos, como podemos nós acreditar no Evangelho?

Acreditando no Evangelho, ou seja, fazendo do Evangelho a nossa prática de vida, («Minha mãe e meus irmãos são aqueles que ouvem a Palavra de Deus e a põem em prática.» Lc 8, 21), seremos então discípulos de Cristo guiados pelo Espírito Santo no deserto que quisermos percorrer e, então, encontrar-nos-emos connosco próprios e conhecendo-nos, percebermos e vivermos Cristo em nós.

Senhor,
conhecendo-me verdadeiramente saberei como sou nada.
No entanto, na humildade de me reconhecer pecador, entrego-me a Ti, e em Ti posso ser tudo o que Te aprouver, mesmo sendo nada.
Amen.





Marinha Grande, 28 de Fevereiro de 2024
Joaquim Mexia Alves

segunda-feira, 26 de fevereiro de 2024

CAMINHO DE QUARESMA IV

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Fechamos os olhos, deixamos que a música, o Requiem de Mozart nos entre pelos ouvidos, passe pela nossa mente e chegue ao nosso coração.

Deixamo-nos tocar por Deus que deu ao homem tais talentos que o leva compor música de uma tal grandeza que percebemos que vai para além da humanidade, pois transporta-nos para outro espaço que não dominamos, mas antes vivemos numa profunda interioridade.

Talvez até uma lágrima ou outra despontem nos nossos olhos, mas deixamo-las correr, deixamos que elas lavem pelo menos por um escasso tempo tudo o que é fealdade no mundo.

Sim, não faz mal nenhum deixarmo-nos transportar para um universo de melodia, de força, de energia, de algo que nos leva a perceber, atendida as necessárias e percebidas diferenças, como este conjunto de notas musicais nos levam a viver o universo criado por Deus, entre estrelas, planetas, galáxias que perfeitamente se encaixam umas nas outras.

Pelo menos a mim a música, esta música, leva-me sempre ao encontro com Deus, porque esta perfeição apenas pode ser graça d’Ele ao homem.

E o caminho de Quaresma?

Por este tempo efémero, como é o nosso tempo físico, deixo que o meu caminhar no deserto seja acompanhado por esta música, por esta exaltação que sinto, porque ao ouvi-la me sinto pequeno, um quase nada e me maravilho pensando como é possível que um homem, ser tão finito no tempo físico, ser capaz de compor algo que vai para além do tempo e se transporta e nos transporta para todo o tempo.

Eterno e infinito é Deus, mas quando Ele nos criou à Sua imagem e semelhança, também nos fez participes dessa Sua eternidade, (se com Ele quisermos viver para sempre), e a música, esta música como outras de grandiosidade inquestionável, tornam-se também quase eternas, porque vindas d’Ele para o homem, podem levar o homem para Ele, ao reconhecer que tudo o que é bom nos vem apenas e só de Deus.

De olhos fechados, levado pelos passos da música, apenas abro o coração e repito sem cessar, num silêncio que não quer quebrar a harmonia:

Aqui estou, Senhor!
Leva-me pelo deserto, guia-me no caminho, dá-me a mão, faz-me viver o Teu amor, a Tua graça.
Perdoa-me porque tantas vezes não vejo a beleza da Tua criação, a beleza e perfeição de tudo o que criaste para o homem e pelo homem.
Ensina-me a encontrar-Te em mim, no amor, na humildade, na entrega, na doação.
Leva-me à oração contínua como se fosse música para os Teus ouvidos.
Faz de mim o quiseres e faz-me viver cada passo no deserto como uma nota de música em que Te fazes presente para mim e para todos.






Marinha Grande, 26 de Fevereiro de 2024
Joaquim Mexia Alves

quinta-feira, 22 de fevereiro de 2024

CAMINHO DE QUARESMA III

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Nestes últimos dias surgiu nas redes sociais uma suposta mensagem do Papa Francisco sobre o jejum.

Basta ler os termos usados na mensagem para se perceber de imediato que a mesma não pode ser do Papa, que é aliás “alvo” de muitas destas mensagens, que são sempre uma deturpação daquilo que ele disse.

O que é interessante, é perceber, do meu ponto de vista, claro, como nos apressamos a dar como certo algo que nos parece afinal mais fácil do que aquilo que a Igreja ao longo dos tempos nos pede como caminho para e com Deus, muito especialmente neste tempo da Quaresma.

Obviamente que um cristão que coloca em prática a Palavra de Deus no seu dia a dia, que se deixa guiar pelo Espírito Santo, sabe perfeitamente que o jejum, ou seja, a contenção na comida, a abstinência de comer carne, etc., não tem “efeito” na nossa vida a não ser que seja acompanhado com uma verdadeira interioridade espiritual, com uma forte vontade de contrição e conversão, com um entregar-se decididamente à vontade Deus, e que, se assim for, nos abre sem dúvida nenhuma aos outros, sobretudo àqueles que mais necessitam, seja material ou espiritualmente.

Porque o Espírito Santo conduz-nos sempre à caridade, não à “caridadezinha”, mas à caridade/amor, que é sempre doação de cada um ao outro, em Jesus Cristo.

E a caridade não se impõe, é livre, é vontade de cada um e como tal não se pode reduzir a um preceito apenas, mas sim, que esse preceito, essa prática, seja vivida como fonte de vida, como entrega a Deus nos outros, com a alegria serena de quem quer fazer a vontade de Deus, porque acredita que só vivendo assim pode alcançar a vida plena prometida por Jesus Cristo, desde sempre e para sempre.

E a caridade que não se impõe, que é livre, que é vontade de cada um, só o é verdadeiramente na medida em que estamos em comunhão com a Caridade perfeita que é Deus em todas as coisas, e assim, não procuramos apenas cumprir um preceito, mas sim porque queremos procurar e encontrar Deus na doação da nossa vontade, na doação de nós próprios.

E, (sem grandes “teologias” para as quais não tenho conhecimentos), os preceitos, as práticas existem para nos lembrar que, se queremos viver em plenitude a vida que Deus nos dá, apenas o podemos fazer em comunhão com Ele, e essa comunhão com Deus é sempre, mas mesmo sempre, comunhão com os outros, não só em Igreja, mas também com todos os que ainda não estão, não são, Igreja.

É tão mais fácil procurar mensagens, frases, atitudes, que parecem aliviar-nos de uma qualquer “carga” que nos parece colocarem em nós.

Mas em Deus e com Deus nada se faz por obrigação, mas sim por amor, porque se amamos, ou queremos amar verdadeiramente Deus, então tudo em nós é feito por amor, para que esse amor seja cada vez mais completo e mais vida em nós.

Então, digamos assim, não há preceito, nem prática, como obrigação imposta, mas sim como caminho que procura cada vez mais o amor de Deus para sermos de Deus e com Deus e em Deus para os outros.

Quanto à tal falsa mensagem do Papa Francisco, que realmente nos chamou a atenção, mas de modo bem diferente, para uma prática de jejum correcta, nada trouxe de novo, digamos assim, porque se realmente entrarmos no nosso íntimo, se inquirirmos o nosso coração, se nos deixarmos guiar pelo Espírito Santo, imediatamente percebemos que o jejum só tem sentido quando vivido na caridade e na entrega a Deus e aos outros.

Até porque essa tal falsa mensagem passa a ideia de que não precisamos de fazer jejum nem abstinência se formos “bonzinhos” para os outros!







Marinha Grande, 22 de Fevereiro de 2024
Joaquim Mexia Alves

terça-feira, 20 de fevereiro de 2024

CAMINHO DE QUARESMA II

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Voltava eu do campo quando vi aquela multidão numa rua de Jerusalém.

Vi-me num instante no meio daquela gente que ululava como possessa, perante um Homem que transportava uma cruz.

O Homem estava desfigurado, ferido, ensanguentado, era a imagem de um desprezado, de um proscrito, de um condenado e, no entanto, emanava d’Ele uma força, uma bondade que eu não conseguia entender.

Arrastava-se penosamente com o peso da cruz, e a sua face estava coberta de sangue que provinha de uma coroa de espinhos que tinha colocada na cabeça.

Era uma imagem desoladora e eu vivia um misto de pena e receio, ao mesmo tempo que sentia um desejo de O ajudar, mas o medo dos soldados ali presentes impedia-me de o fazer.

Absorto nos meus pensamentos sobre tudo o que aquilo significava, senti-me agarrado por dois soldados que, sem nada me perguntar, me obrigaram a ajudar Aquele Homem a transportar a Sua cruz.

Incapaz de reagir dei por mim a colocar a Sua cruz nos meus ombros e a seguir Aquele Homem na Sua caminhada para a crucificação.

Não conseguia perceber se a cruz me pesava mais do que o sentimento que tinha de me sentir também invectivado por aqueles que O ofendiam, quando eu afinal nada tinha a ver com tudo aquilo.

Coisa estranha, pensei eu, sentia aquela cruz como um pouco das cruzes da minha vida que tantas vezes me recusava a carregar.

Quanto mais caminhávamos, com grande dificuldade, mais o meu coração se ia enchendo de compaixão por Aquele Homem, que eu não conhecia, mas sentia como Alguém muito próximo de mim.

Chegados ao Calvário, Ele olhou para mim com os olhos mais doces que alguma vez eu tinha visto e senti-me envolvido num amor para mim incompreensível, mas que eu percebi bem que vinha d’Ele.

Fiquei ali, extático e sem reação, a olhar para a crucificação, para a agonia d’Aquele Homem, que eu sentia no meu coração inexplicavelmente, até à Sua morte, antecedida de um pedido de perdão ao Seu Pai por todos aqueles que O matavam.

No caminho de regresso a casa senti a voz d’Aquele Homem que me dizia docemente:
Simão de Cirene, obrigado por Me teres ajudado a levar a Minha cruz. Fica a saber que nela estava também a tua cruz do dia a dia e que, de agora em diante, serei Eu que te ajudarei a carregares a tua cruz todos os dias.

Do meu coração apenas saía um contrito obrigado, Senhor, obrigado!

Ah, Senhor, quisera eu ser Simão de Cirene, mas por vezes nem a minha cruz eu quero levar!




Marinha Grande, 20 de Fevereiro de 2024
Joaquim Mexia Alves

sexta-feira, 16 de fevereiro de 2024

CAMINHO DE QUARESMA I

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Prostrado no chão, sinto o peso dos meus pecados e arrasto-me como um penitente à procura de perdão.

Ouso levantar os olhos e vejo-Te, Jesus, de pé, com a bondade estampada no rosto e os braços abertos para mim.

Perguntas-me cheio de amor:
Porque estás assim prostrado no chão, vergado com todo esse peso que colocaste nos teus ombros?

Eu nem ouso olhar-Te, mas respondo num murmúrio envergonhado:
É a minha vergonha, Senhor, o peso dos meus pecados quando não fiz a Tua vontade e me afastei de Ti.

Ouço novamente a Tua voz que ecoa no meu coração dizendo-me:
Mas meu filho, Eu já te libertei de todo esse peso. Sei do teu arrependimento, da tua contrição, por isso já te perdoei no Meu coração.

Olho-Te então novamente e digo com voz suplicante:
Senhor, mas este peso parece que não me deixa levantar, parece que me abate e não me deixa viver a vida que Tu me queres dar.

A Tua voz torna-se ainda mais amorosa, se tal é possível, porque ela está sempre repassada de amor eterno:
Levanta-te, vamos! Quero-te aqui Comigo, nos Meus braços, junto ao Meu coração, deixando-te envolver no Meu perdão, no Meu amor.

Levanto a cabeça e vejo a Tua mão estendida para mim, chamando-me do chão onde teimava em permanecer.

Dou-Te a mão e Tu, Jesus, puxas-me para Ti, encostas-me ao Teu peito e, com um sorriso lindo, dizes:
Meu filho, foi para isto que Eu vim, para carregar as tuas fraquezas na Minha Cruz, para me entregar inteiramente por ti e assim te libertar do peso do pecado que te quer arrastar pelo chão. 
Levanta-te, vamos! Quero que faças Comigo esta viagem pelo deserto do nosso permanente encontro. Deixa-te guiar pelo Espírito que derramo em ti. Coloca um sorriso nos teus lábios, enche de confiança o teu coração, deixa que a esperança te faça caminhar, porque Eu estou contigo e nunca te hei-de deixar.

Levanto-me, reconheço-me pecador, mas isso já não é para mim uma opressão, uma prisão, porque no Teu amor, Senhor, encontrei a libertação, encontrei a salvação.





Marinha Grande, 16 de Fevereiro de 2024
Joaquim Mexia Alves

quarta-feira, 14 de fevereiro de 2024

QUARTA FEIRA DE CINZAS E QUARESMA

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É sempre assim desde há alguns anos para cá quando se aproxima a Quarta Feira de Cinzas, a Quaresma.

O meu coração torna-se mais pequeno, ou maior, nem sei bem, e enche-se de uma alegria contida, de uma confiança, de uma esperança, de uma vontade tremenda de entrar em mim próprio e procurar tudo o que está mal e tudo o que está bem, e com os olhos do coração fixados em Jesus Cristo, deixar que o Espírito Santo tome conta de mim e me leve no caminho contrição, no caminho da confissão, no caminho da conversão, que desperta ainda mais em mim, com uma força inabalável.

E se me “cubro” de cinzas nesse primeiro dia de Quaresma, deixo que ao longo dos dias essas cinzas tornem em cinza também tudo aquilo que me entristece por não ter sido capaz de resistir a tanta coisa errada que sempre acabo por fazer.

Não me deleito com as minhas fraquezas, como um predestinado, mas deixo que elas me façam sentir a minha inconstância, a minha infidelidade, o meu pobre amor por Jesus Cristo Nosso Senhor.

Não me derrotam essas fraquezas, não me destroem nem aniquilam, porque colocadas nas mãos do Salvador, com um arrependimento que sempre quero sincero, acabam por me fazer mais forte para as combater, quando elas regressam, e sim, sempre regressam, porque são caminho de conversão de todos os dias.

Mas no fundo das cinzas, quase tapado por elas, há sempre uma réstia de fogo, que é o Espírito Santo que teima em não se apagar, pois só precisa do meu sim, para me reacender e reavivar.

E é então que o coração pequeno por causa das fraquezas que o apertam, se torna ainda maior para poder conter o amor de Deus, que me toca, me envolve, me chama e me salva de mim próprio.

Abençoada culpa, que me mostra o meu pecado, me leva ao arrependimento, e me traz o perdão do meu Deus que deu a vida por mim.

É sempre assim desde há alguns anos para cá quando se aproxima a Quarta Feira de Cinzas, a Quaresma.





Marinha Grande, 14 de Fevereiro de 2024
Joaquim Mexia Alves

terça-feira, 13 de fevereiro de 2024

MAJOR HUMBERTO BORDALO XAVIER

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Sou hoje confrontado com o falecimento do “meu Capitão” Bordalo, que nunca chegou a ser “meu Capitão”, mas era e foi sempre o meu Capitão Bordalo.

Quando fui enviado a comandar tropas guineenses, muito especialmente o Pelotão de Caçadores Nativos 52, conheci em Bambadinca o então Cap. Bordalo, que era o comandante da Companhia de Caçadores 12, constituída também por militares guineenses, enquadrados por oficiais e sargentos da então metrópole.

Ambos temos o curso de Operações Especiais, (ele bem antes de mim), hoje conhecidos como Rangers.

A amizade entre os dois foi imediata e a nossa maneira de ser e de pensar tornou-nos extremamente unidos.

O Capitão Bordalo era um homem simples, sem alardes, (como são sempre os grandes homens), e um combatente extraordinário, que galvanizava as suas tropas por ser sempre o primeiro a liderar, mas também o primeiro a defender aqueles que estavam debaixo das suas ordens e, isso mesmo, incutiu em mim, o que nos trouxe alguns “amargos de boca” com alguns superiores nossos.

Nunca servi directamente sob as suas ordens, mas fizemos algumas operações militares conjuntas da sua C. Caç. 12 com o meu Pel. Caç. Nat. 52.

Numa altura em que as condições de vida a que eu com outros, estávamos sujeitos, o Cap. Bordalo foi o garante da minha “sanidade mental”, com o seu apoio sempre próximo, franco e amigo.

Retenho na memória, há uns anos em Monte Real, quando eu estava ao fim da tarde a jogar ténis no campo frente ao Hotel das Termas e vejo parar um carro e dele sair uma pessoa que me pareceu o Cap. Bordalo.

Achei que não podia ser, mas roído pela curiosidade pedi desculpa ao meu parceiro e fui perguntar ao porteiro do Hotel quem era a pessoa que tinha chegado.
A resposta deu como certa a minha suposição. Não o via desde a Guiné.

Imediatamente pedi ao porteiro que ligasse para o quarto e pedisse ao Capitão para vir à recepção por um motivo qualquer.

Quando nos vimos, demos num abraço em que literalmente lhe peguei ao colo, (o Cap Bordalo Xavier era bem mais baixo do que eu), e ficámos ali não sei quanto tempo abraçados, com as lágrimas nos olhos.

O hall do Hotel estava cheio de gente, que ficou muito espantada por me ver assim abraçado a um homem de barbas.

Passados uns tempos, recebi uma convocatória para um encontro de Rangers em Lamego e decidi meter-me no carro e fazer a viagem.

Quem estava a receber os camaradas de armas era, como não podia deixar de ser, o então Major Bordalo.

Mais um abraço daqueles que faz tremer o chão, e a “obrigação” de imediatamente me fazer sócio da AOE – Associação de Operações Especiais que, com um padrinho como ele, não podia de forma nenhuma recusar.

Seguiram-se anos de vários encontros em Lamego, até que a vida com as suas voltas, não me permitiu, ou eu não me disponibilizei para isso, e deixámos de nos encontrar.

Repetidamente me prometi a mim mesmo que iria a Lamego dar-lhe um abraço novamente e repetidamente o comodismo me “impediu” de o fazer, o que hoje, neste dia, me dói verdadeiramente no coração e na vida.

Podia ficar horas a escrever, a falar sobre o Cap. Bordalo, de como ele era um homem de coração grande, como era um verdadeiro Comandante que comandava pelo exemplo, como era um amigo sempre pronto a me apoiar, mas também a fazer ver os erros que eu ia cometendo, como me safou de levar uma punição pela minha forma de reagir a ordens sem sentido, enfim, de como me fez mais homem, mais militar, mais oficial, mais amigo.

Ontem escrevia sobre as lágrimas.
Hoje as lágrimas são minhas, e sim, um homem chora e eu choro a saudade de um homem bom que tornou a minha vida melhor.

À sua família o meu sentido abraço.

A ti, (agora trato-te por tu), meu Capitão Bordalo, até já, quando nos encontramos no cantinho do céu que recolhe os Rangers no seu eterno descanso.





Marinha Grande, 13 de Fevereiro de 2024
Joaquim Mexia Alves

 


sexta-feira, 9 de fevereiro de 2024

OUVIR E FALAR

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«Imediatamente se abriram os ouvidos do homem, soltou-se-lhe a prisão da língua e começou a falar corretamente.» Mc 7, 35

O homem que era surdo e mudo começou a ouvir e a falar.

E muitos de nós, eu incluído, precisávamos de não ouvir e não falar, quando ouvimos dizer mal do outro ou nos entretemos a dizer mal e a criticar os outros.

Quero ver, quero sobretudo sentir, as últimas palavras deste versículo do Evangelho de hoje, «começou a falar correctamente», como uma advertência, como uma chamada de atenção, para mim e para todos os que, como eu, por vezes criticamos sem sentido, falamos mal disto ou daquilo só porque não nos agrada, transmitimos o que outros nos dizem sabendo no nosso coração que estamos a levantar boatos, para já não lhe chamar falsos testemunhos.

E quando escrevo sobre o falar, aplico-o também ao ouvir, porque infelizmente muitas vezes não fechamos os nossos ouvidos às críticas infundadas, à maledicência, às mentiras propaladas.

E o ouvir e o falar são capacidades que Deus nos deu/dá para podermos ser mais comunhão uns com os outros, e, afinal, tantas vezes as usamos para desunir, para criar aversões, enfim, para dividir.
E quem divide é o inimigo, bem o sabemos.

Releio o que escrevi e sinto a dureza das palavras, mas a verdade é que a critica infundada, sem ser para construir, para unir, e, sobretudo a maledicência, são venenos terríveis que nos envenenam por dentro e nem sequer dão ao que foi “atingido” pela maledicência, a possibilidade de se defender, porque dela só poderá ter conhecimento tardio.

Que o mesmo Senhor Jesus que um dia abriu os meus ouvidos e soltou a minha língua para que eu pudesse ouvir e falar, me dê o discernimento, a sensatez, a coragem para recusar ouvir o que não presta e falar o que não devo.





Marinha Grande, 9 de Fevereiro de 2024
Joaquim Mexia Alves

terça-feira, 6 de fevereiro de 2024

O CRISTÃO E A ALEGRIA

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Do livro do Papa Bento XVI, “Jesus de Nazaré – A infância de Jesus”:

«Na saudação do anjo impressiona o facto não dirigir a Maria a habitual saudação judaica Shalom -a paz esteja contigo - mas a fórmula grega khaire que se pode tranquilamente traduzir por Avé como sucede na oração Mariana da igreja formada com palavras extraídas na narração da Anunciação.
Mas é justo individuar neste ponto o verdadeiro significado da palavra khaire: alegra-te!
Com este voto do anjo podemos dizer começa propriamente um Novo Testamento.
A palavra volta a aparecer na noite Santa nos lábios do anjo que diz aos pastores: «anuncio-vos uma grande alegria.» (Lc 2, 10)
Aparece em João por ocasião do encontro com o ressuscitado: «os discípulos encheram-se de alegria por verem o Senhor» (Jo 20, 20)
Nos discursos de despedida, em João, aparece uma teologia da alegria, que esclarece, por assim dizer, as profundezas desta palavra: «Eu hei-de ver-vos de novo! Então o vosso coração há de alegrar-se e ninguém vos poderá tirar a vossa alegria» (Jo 16, 22)»

Poderíamos acrescentar ainda versículos da Bíblia onde a alegria é citada como uma constante que deve fazer parte inerente do ser cristão.

«E donde me é dado que venha ter comigo a mãe do meu Senhor? Pois logo que chegou aos meus ouvidos a tua saudação o menino saltou de alegria no meu seio» (Lc 1, 43-44)

«Manifestei-vos estas coisas para que esteja em vós a minha alegria e a vossa alegria seja completa» (Jo 15, 11)

«Alegrai-vos sempre no Senhor! De novo o digo: alegrai-vos!» (Fl 4, 4)

Mas quando nos confrontamos com a realidade do ser cristão hoje em dia, é muito difícil reconhecer esta alegria de que tanto nos fala a Palavra de Deus.

Obviamente que a alegria de que nos fala a Bíblia, não é a alegria ruidosa da gargalhada fácil, da anedota engraçada, de um qualquer humor corriqueiro.

Não, esta alegria de que nos fala a Bíblia, é a alegria do amor de Deus, que gera confiança, que enche de esperança, que nos deve preencher totalmente por acreditarmos que Ele está connosco desde sempre e para sempre e que nunca nos abandona.

É a alegria que nos é dada pela confiança de acreditarmos que, como no episódio da cura da sogra de Pedro (Mc 1, 30-31), Ele nos toma pela mão e nos ajuda a ultrapassar as contrariedades, as dificuldades, as doenças, enfim, todas as vicissitudes inerentes à vida, mas que não são, afinal, a vida que Ele mesmo nos dá.

Esta alegria de Deus e em Deus, porque vinda do Seu amor, é contagiante, e por isso é testemunho imprescindível do ser cristão, porque se assim não for, então Deus mais parecerá um peso do que uma libertação, do que a verdadeira salvação.

E esta alegria tantas vezes não se reflecte na nossa face, no nosso sorriso, na nossa calma perante as dificuldades, mas também nas nossas palavras, nas nossas respostas, que são tantas vezes esmorecedoras para os outros, quando nos queixamos por tudo e por nada, quando passamos a imagem de que nada está bem connosco, porque muitas vezes usamos expressões demasiado arreigadas às conversas habituais, sem cuidarmos de perceber que passamos afinal uma imagem negativa da nossa vida.

Isso quer dizer que não devemos ligar às contrariedades da vida, às tristezas, às doenças, etc.?
Claro que não, mas sim não fazer de tudo isso uma espécie de predestinação que é em tudo contrária ao amor e à liberdade que Deus nos dá.

Quando nos deixamos tocar, envolver, iluminar, conduzir pelo Espírito Santo, tudo se modifica e nos faz encontrar razões para lutar esperando e acreditando que em Deus temos sempre a vida verdadeira, que é vida em plenitude, «já e ainda não».

«Eu vim para que tenham vida e a tenham em abundância.» Jo 10, 10






Marinha Grande, 6 de Fevereiro de 2024
Joaquim Mexia Alves

quinta-feira, 1 de fevereiro de 2024

A FALTA DE FÉ

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«Estava admirado com a falta de fé daquela gente.» Mc 6, 6

Este versículo do Evangelho de ontem, chamou-me a atenção, ou melhor, ficou no meu coração, no meu pensamento.

Como ando a reler a Encíclica Dominum et Vivicantem de São João Paulo II, sobre o Espírito Santo na vida da Igreja e do mundo, este versículo ganhou uma dimensão digamos que ainda mais actual.

«a «blasfêmia» não consiste propriamente em ofender o Espírito Santo com palavras; consiste, antes, na recusa de aceitar a salvação que Deus oferece ao homem, mediante o mesmo Espírito Santo agindo em virtude do sacrifício da Cruz. Se o homem rejeita o deixar-se «convencer quanto ao pecado», que provém do Espírito Santo e tem carácter salvífico, ele rejeita contemporaneamente a «vinda» do Consolador: aquela «vinda» que se efectuou no mistério da Páscoa, em união com o poder redentor do Sangue de Cristo: o Sangue que «purifica a consciência das obras mortas». (DV 6-46)

Ao ler esta passagem da Encíclica e percebendo que cada vez mais o mundo nos quer convencer que o pecado não existe, percebo que “aquele” que nos quer perder nos faz duvidar, afinal, da obra do Espírito Santo que é «convencer-nos quanto ao pecado», para que nos convertamos e acreditemos na salvação em Jesus Cristo.

E para acreditar no Espírito Santo, no Pai e no Filho, é preciso Fé, a Fé que sendo dom de Deus, se faz vida em nós e nos leva a viver segundo a vontade de Deus, afastando-nos da “lei do pecado”, cujo fim é a morte.

Mas se não temos Fé, não acreditamos na Encarnação, Paixão, Morte e Ressurreição de Jesus Cristo, não acreditamos no Espírito Santo e não acreditamos no infinito amor do Pai.

E, se não acreditamos no infinito amor de Deus, não acreditamos no Seu infinito perdão, pecamos contra o Espírito Santo, e fechamos a nossa vida à existência de Deus, não Lhe permitindo, perante a nossa falta de arrependimento por não acreditarmos na existência do pecado, que nos perdoe e no Seu amor nos salve da “morte eterna”.

E Deus, que nos criou em inteira liberdade, não pode coarctar essa mesma liberdade que por Ele nos foi dada e, como tal, somos nós que nos condenamos por não acreditarmos em Deus e no seu infinito amor.

Como São João Paulo II nos escreve na referida Encíclica:
«Ora a blasfêmia contra o Espírito Santo é o pecado cometido pelo homem, que reivindica o seu pretenso «direito» de perseverar no mal — em qualquer pecado — e recusa por isso mesmo a Redenção. O homem fica fechado no pecado, tornando impossível da sua parte a própria conversão e também, consequentemente, a remissão dos pecados, que considera não essencial ou não importante para a sua vida. É uma situação de ruína espiritual, porque a blasfêmia contra o Espírito Santo não permite ao homem sair da prisão em que ele próprio se fechou e abrir-se às fontes divinas da purificação das consciências e da remissão dos pecados.» (DV 6-46)

Estaremos também nós admirados, ou melhor, conscientes da falta de fé que parece tomar conta do mundo?



Marinha Grande, 1 de Fevereiro de 2024
Joaquim Mexia Alves