quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

A LUZ E AS TREVAS

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Este tempo da Quaresma, é um tempo particularmente indicado para meditarmos na nossa caminhada com Deus e para Deus.

Assim e mais uma vez me coloquei perante esta incrível constatação, que consiste em que quanto mais caminho, mais me falta caminhar, quanto mais tento resistir ao pecado, mais me parece que o pecado me tenta e ainda, que ao vencer, pela graça de Deus, algumas fraquezas do meu dia-a-dia, logo surgem outras que anteriormente não me parecia importante combater.

E, claro, lembro-me de algumas pessoas que me questionavam por isso mesmo, ou seja, que na caminhada que vão fazendo com Deus e para Deus, aquilo que dantes não lhes aparecia como fraqueza, se torna agora pecado a vencer.

Veio então ao meu pensamento esta imagem de me saber num quarto escuro, sem luz, escolhendo uma peça de roupa para vestir, mas que pretendo “perfeita”, não só na conjugação da cor, mas também numa perfeita qualidade de confecção.

A verdade é que, no meio das trevas, nada consigo distinguir e, portanto, ao toque, a minha sensação é de que aquela peça de roupa será a mais indicada pois parece-me não ter defeitos, e até posso acreditar que a cor é a mais perfeita para o que desejo.

Trago então a peça de roupa para um local com um pouco mais de luz, uma penumbra, e se ainda não consigo distinguir bem a cor, nem qualquer imperfeição, percebo sem dúvida uma mancha, que me parece uma nódoa, pois destoa na uniformidade do tom da peça que consigo ver. Mas não tem problema, julgo eu, pois com uma simples lavagem a nódoa sairá.

Passo então para um lusco-fusco e já me é dado perceber que a nódoa é efectivamente grande, mas mais do que isso detecto um pequeno buraco na peça de roupa que me parece um buraco feito por uma traça.
Ainda não me preocupo em demasia, porque um pequeno ponto de costura dado no sítio certo, fará com que tal buraco desapareça.

Aproximo-a então da luz de um candeeiro, o que já me permite perceber que a cor é de um tom indeterminado, e que talvez existam algumas imperfeições de confecção da peça de roupa.
Ainda não desanimo, porque provavelmente são coisas que não se notarão muito.

Saio então para a luz do dia e aí consigo já ver que o tom da cor não tem grande definição, ou seja, não é uma cor definida que eu possa conjugar com facilidade com o resto da minha roupa.
Confirmo também que se a nódoa é grande, sairá no entanto com facilidade numa lavagem simples e que o buraco da traça não se notará, depois de cosido.
Mas, àquela luz natural, a peça de roupa não me agrada muito, pois parece-me carregada de pequenas imperfeições que eu ainda não tinha conseguido identificar.
Se fosse para usar em ambientes fechados, com luz artificial, até poderia passar, mas para usar assim, à luz do dia, julgo que não me agrada, nem agradará a outros.

Sou então levado pela curiosidade de perceber até que ponto aquela peça de roupa tem defeitos e aproximo-a da luz do sol, para que incida totalmente sobre ela e eu possa descortinar os mais ligeiros defeitos.

Então, sob essa luz, já não ligo sequer à nódoa e ao buraco da traça, que facilmente serão eliminados, mas percebo perfeitamente pequenos defeitos na confecção da peça de roupa, que assim vistos e percebidos, retiram toda a graça, toda a beleza daquela peça de roupa que eu tinha escolhido para vestir.
Aquela peça de roupa que me parecia perfeita nas trevas, foi ganhando defeitos à medida que a luz incidia nela, de tal modo, que agora percebo que a não posso usar todos os dias, porque não só não me agrada, mas também porque com certeza não agradará àqueles que comigo se cruzam.

Connosco, na nossa caminhada com Deus e para Deus, sucede o “mesmo”.

À medida que nos afastamos das trevas para a Luz de Deus, vamos percebendo primeiro os grandes defeitos, os grandes pecados, que por Sua graça, combatemos com êxito.

Mas depois, à medida que nos vamos “examinando” à Luz de Deus, vamos descobrindo os nossos “defeitos”, as nossas fraquezas, que dantes não nos incomodavam, mas que agora, numa caminhada de verdade, percebemos que é necessário combater, para nos “fazermos” mais conformes à imitação de Cristo.

Por isso na nossa caminhada com Deus e para Deus, iremos sempre descobrindo na nossa vida terrena, “montes” para aplanar, “curvas” para endireitar, “espinhos” para aceitar, mas vivendo ao mesmo tempo a certeza inabalável que Ele está sempre connosco, e nos dá forças e “ferramentas” para a caminhada.

Por isso mesmo, ao contrário da peça de roupa que já não quero vestir, porque não a posso emendar de todos os defeitos, nós podemos sempre, pela graça de Deus, ir nascendo de novo pelo seu perdão, e purificando-nos do mal pelo seu amor.

E este é o caminho de conversão que nunca está acabado, enquanto não formos por Ele chamados, e pela sua graça, vivermos no seu gozo, eternamente.


Monte Real, 29 de Fevereiro de 2012
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quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

«PEGA NO TEU CATRE E ANDA»

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Evangelho segundo S. Marcos 2,1-12.

Quando Jesus entrou de novo em Cafarnaúm e se soube que estava em casa,
Juntou-se tanta gente que nem mesmo à volta da porta havia lugar, e anunciava-lhes a Palavra.
Vieram, então, trazer-lhe um paralítico, transportado por quatro homens.
Como não podiam aproximar-se por causa da multidão, descobriram o tecto no sítio onde Ele estava, fizeram uma abertura e desceram o catre em que jazia o paralítico.
Vendo Jesus a fé daqueles homens, disse ao paralítico: «Filho, os teus pecados estão perdoados.»
Ora estavam lá sentados alguns doutores da Lei que discorriam em seus corações:
«Porque fala este assim? Blasfema! Quem pode perdoar pecados senão Deus?»
Jesus percebeu logo, em seu íntimo, que eles assim discorriam; e disse-lhes: «Porque discorreis assim em vossos corações?
Que é mais fácil? Dizer ao paralítico: 'Os teus pecados estão perdoados’, ou dizer: 'Levanta-te, pega no teu catre e anda’?
Pois bem, para que saibais que o Filho do Homem tem na terra poder para perdoar os pecados,
Eu te ordeno disse ao paralítico: levanta-te, pega no teu catre e vai para tua casa.»
Ele levantou-se e, pegando logo no catre, saiu à vista de todos, de modo que todos se maravilhavam e glorificavam a Deus, dizendo: «Nunca vimos coisa assim!»



No Domingo passado foi-nos dado ler e meditar nesta passagem tão conhecida do Evangelho de São Marcos, que nos é referida também em São Mateus (Mt 9, 1-8), em São Lucas (Lc 5, 17-26) e, de uma forma diferente, em São João (Jo 5, 1-18).

Procurando algo mais do que tudo aquilo que eu já tinha reflectido e meditado nesta passagem, (porque a Palavra de Deus é viva e sempre nova), detive-me no pormenor do “catre”, e no facto de Jesus dizer àquele homem para levar o “catre” consigo.

Em Marcos três vezes é feita menção à ordem de Jesus «pega no teu catre e anda», em Mateus apenas uma vez, em Lucas duas vezes e em João nada menos do que cinco vezes.

Fiquei a meditar no que queria dizer para mim, para a minha vida, este pormenor tantas vezes repetido nestes Evangelhos?

O “catre” significou então para mim, não só os pecados daquele homem, mas também aquilo que o prendia e não o deixava andar, falando espiritualmente, claro.

O “catre” era assim também o passado daquele homem, um passado de pecado e paralisia que não o deixava ser verdadeiramente livre.

Porquê então a necessidade de, depois de curado, levar consigo o “catre” e “andar”?

Deus não quer apagar o nosso passado, nem nós devemos querer apagar o nosso passado, ou tentar fazer que ele deixe de existir.
O nosso passado, com o que teve de bom, mas também com o que teve de mau, faz parte de nós e não o podemos apagar, porque a nossa vida seria então incompleta.
O nosso passado deve então ser vivido como um ensinamento permanente daquilo que fizemos bem e tudo aquilo que devemos evitar porque fizemos mal.
Pela graça de Deus, «os teus pecados estão perdoados», o nosso passado está perdoado, mas não deixa de fazer parte da nossa vida, apenas que, pelo perdão de Deus, já não nos magoa, já nem sequer nos deve envergonhar, mas apenas ser uma memória que nos ensina o que evitar para não voltar a pecar.

Sei, por experiência própria, o que é viver isto mesmo que agora aqui reflicto.

Com efeito, nos muitos anos em que andei afastado de Deus, da Fé, da Igreja, também “ganhei” um “catre”, um pesado “catre”, que não me deixava ser livre, que não me deixava caminhar na vida ao encontro de Deus, o Único que nos dá a vida completa, a «vida em abundância», e que nos faz inteiramente livres.
Durante algum tempo foi muito difícil carregar o “catre”, porque ele pesava muito, e por isso eu queria deixá-lo, queria apagá-lo da minha vida.
E pedi muito a Deus que me ajudasse a esquecê-lo, que me ajudasse a libertar dele, para que me sentisse livre para caminhar.

Até que um dia, em adoração e suplicando mais uma vez a graça de me ver livre do meu “catre”, percebi intimamente, por graça de Deus, que eu só poderia ser livre quando aceitasse o meu “catre” com tudo aquilo que ele tinha de mau, mas aceitando-o com a certeza de que ele já não me poderia pesar, pois Deus no Seu perdão, o tinha aliviado desse peso do pecado.
Mas mais do que isso, teria de o carregar, já não como um peso, mas como um ensinamento de tudo o que deveria evitar na minha vida, para não mais paralisar a minha caminhada.
E mais ainda, que esse “catre” deveria servir também para eu dar testemunho a outros, de como o perdão de Deus é infinito, como o encontro pessoal com Ele muda as nossas vidas, e como não há nada que Deus não perdoe, perante o nosso sincero arrependimento.

Percebi então como era importante aquele homem, nós homens, transportarmos os nossos “catres”: nós somos um todo com o nosso passado, com o nosso presente, com o nosso futuro.
Mesmo quando no passado, por qualquer razão nos afastámos de Deus, Ele não deixou de nos amar, de estar connosco, e até de carregar o nosso “catre” connosco.

Perdoados os pecados, ficamos curados da paralisia espiritual e podemos então caminhar livres, com tudo aquilo que fomos e somos, pois o “catre” já não nos pesa, pela graça do perdão de Deus.


Marinha Grande, 22 de Fevereiro de 2012
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terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

O MACARÉU

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O facto de ter estado na guerra da Guiné, entre 1971 e 1973, é algo que, obviamente, vem muitas vezes ao meu pensamento.

Recentemente, estando em oração na igreja, veio à minha memória um fenómeno natural, a que assisti muitas vezes num destacamento militar nas margens do rio Geba, chamado Mato Cão, em que estive “aquartelado” durante cerca de 9 longos meses, e que é conhecido por macaréu.

O macaréu para explicar em palavras simples e concisas, é uma onda marítima, sobretudo nas marés mais cheias, que pela sua força, galga a corrente do rio, desde a sua foz em Bissau, até perto de Bafatá, já no interior da Guiné.

Este fenómeno acontece noutros rios, noutros lugares, como por exemplo no Brasil, e é muito curioso, pois podemos dizer que enquanto a onda marítima galga o rio e sobe por ele acima, o rio vai continuando a correr para a sua foz, por baixo da onda do macaréu.

Perguntei-me então o que tinha esta memória a ver com a oração que fazia?

Eis aquilo que fui reflectindo:

O rio corre sempre para o mar, como nós homens, acreditando ou não, “corremos” para o nosso encontro final com Deus.

O mar é uma imensidão, um “todo”, e a sua onda, portanto, tem um enorme poder.
O nosso Deus é o Todo, e o seu poder não tem limites.


A onda do mar, o macaréu, vence o rio, mas não o anula, pelo contrário o rio continua a correr para o mar em toda a sua “identidade”.
O amor e a vontade de Deus, (se o homem quiser), também vence o homem, mas não lhe retira a sua humanidade nem as características próprias de um ser individual e irrepetível, como o são todos os homens.

O macaréu muda o aspecto exterior do rio, torna-o maior, mais caudaloso.
O amor de Deus e a sua vontade, (aceites pelo homem), muda o homem no seu interior, que depois se reflecte na sua imagem exterior, no testemunho que dá como cristão e católico.
E também o torna mais activo, por força dos dons, dos talentos que Deus vai dando a cada um que O procura em «espírito e verdade».

Quando passa o macaréu o rio deixa de se ver, (embora saibamos que ele lá está), pois reflecte apenas a onda marítima que o domina.
O amor e a vontade de Deus, (conformados no homem), faz com que ele reflicta mais Deus do que a sua própria vontade, embora saibamos que é o homem que ali está em todo o seu ser.

O macaréu é muitas vezes aproveitado pelos barcos para subirem e descerem o rio, a fim de chegarem aos seus portos de destino.
O amor e a vontade de Deus, (testemunhado pelo homem), também leva outros homens ao encontro com Deus, que é o seu eterno porto de salvação.

A força do macaréu arranca por vezes árvores das margens do rio, e no seu regresso traz consigo muito lixo que o rio contém.
O amor e a vontade de Deus, (vividos pelo homem), também arranca dele o pecado, e limpa o que está mal e não presta na sua vida.

O macaréu em toda a sua força, dá uma nova vida ao rio, agitando as suas águas e fornecendo mais alimento aos animais que do rio vivem.
O amor e a vontade de Deus, (queridos pelo homem), renovam a sua vida, alimentando-o da Eucaristia, dando-lhe mais vida, e «vida em abundância»*.

Há, pelo menos, duas diferenças muito grandes, no entanto, nesta comparação, embora estas sejam “coisas” que não são comparáveis.

O macaréu impõe-se ao rio, quer o rio queira quer não.
O amor e a vontade de Deus nunca se impõem ao homem, pois quer precisar que o homem se abra por vontade própria a receber tudo o que Deus tem para lhe dar.

O macaréu é periódico e tem graduações de intensidade.
O amor e a vontade de Deus, são eternas, e a sua “dimensão” é o Todo de Deus, no Tudo que em nós quer fazer.


Senhor,
abre o meu coração ao teu amor e à tua vontade,
para que eu seja sempre um homem novo,
na plenitude da vida que amorosamente me queres dar.
Amen.


*Jo 10,10


Marinha Grande, 13 de Fevereiro de 2012
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terça-feira, 7 de fevereiro de 2012

CINCO CHAGAS DO SENHOR

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Cinco são as Chagas do meu Senhor,
que na carne as suportou,
para que eu pudesse viver.

Cinco é o tudo que me faz viver,
o Pai, o Filho, o Espírito Santo,
a Mãe e a Igreja,
e eu espero que assim sempre seja.

Cinco são os dedos de cada mão
e quando os conto um a um
são menos que os meus pecados.

Cinco são os meus sentidos
e em cada um que eu sinto
me deixo pecar e perder.


Muito mais que cinco vezes
hei-de bater no meu peito,
bem junto ao coração,
hei-de baixar a cabeça,
num acto de contrição,
hei-de contar os meus pecados,
em perfeita confissão,
para viver o teu amor,
Senhor,
alcançando o teu perdão.



Monte Real, 7 de Fevereiro de 2012
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