quarta-feira, 9 de julho de 2008

"VINDE A MIM, TODOS OS QUE ESTAIS CANSADOS E OPRIMIDOS"...

Como a vida lhe pesava nos ombros!
Como tudo lhe parecia perdido, os anos que tinha vivido, a entrega que tinha feito àquela família, o empenho que nela tinha colocado!
Tudo se desmoronava como um castelo de cartas, agora que, depois de anos e anos de violência doméstica tinha decidido pôr fim àquela união!
O que mais lhe custava ao ter saído de casa por vontade própria era pensar que não se podia aproximar mais daquEle que tinha sido e era a sua força, a sua alegria, no meio de tanta incerteza, de tanta dor, de tanta revolta.
Tinham-lhe dito que se saísse de casa, se abandonasse aquela união, aquele casamento, nunca mais poderia aproximar-se da Comunhão, da Eucaristia, e isso tinha-a levado sempre a dar cada vez mais de si, a perdoar cada vez mais as afrontas, as violências, mas agora já não podia mais porque a sua vida estava em risco e com ela a dos seus filhos.
Não conseguia imaginar a sua vida sem a Comunhão, sem a Eucaristia, sem sentir e viver a presença constante do amor de Deus na sua vida.
Não podia ser assim!
Ela sentia que não podia ser assim!
Diziam-lhe que não, que não havia possibilidades, que era Doutrina da Igreja, que a Igreja não aceitava as pessoas que “abandonavam” os seus casamentos, mas ela, embora por vezes revoltada com aquela Igreja, sentia que algo estava mal, que verdadeiramente não era assim.
Deus não podia querer que ela colocasse a sua vida e a dos seus filhos em risco, perante a violência que aquele que ela tinha escolhido para seu marido e pai dos seus filhos, vinha exercendo diariamente sobre ela e sobre eles.
Ela sabia que tinha feito tudo, tudo o que lhe era humanamente possível, para resolver aquela situação.
Tinha perdoado, tinha esquecido, tinha calado, tinha rezado, (se tinha rezado, todos os dias fervorosamente), tinha pedido ajuda para ele e para ela e nada, nada mudava, a violência continuava e cada vez mais perigosa, (parecia até que a sua maneira de estar, de perdoar, ainda o levava a fazer pior), de tal modo que sentia que a sua vida agora estava verdadeiramente em risco e que portanto tinha de tomar a decisão que acabou por tomar.
Mas não acreditava, apesar de tudo o que lhe diziam, que a Igreja não a acolhesse no seu seio, não acolhesse aqueles que sofrem.
Decidiu ir falar com alguém que realmente lhe dissesse a verdade da Doutrina, a verdade do que a Igreja dizia sobre o problema que ela vivia e sobre o qual tinha tomado aquela decisão tão amarga e difícil.
Procurou um sacerdote, alguém da sua confiança, aquele que tantas vezes a tinha acolhido e com ela tinha vivido esses momentos tão difíceis, e abriu-lhe o coração.
Queria saber, como tantos lhe diziam, se já não podia ir à igreja, se já não podia participar da Eucaristia, se já não podia confessar-se e receber a Comunhão.
Queria saber enfim, se aos olhos da Igreja ela era uma proscrita, uma não desejada, uma que já não era aceite.
O sacerdote, mais uma vez, ouviu-a em silêncio, pesou todas as suas palavras, todas as suas dores, todas as suas razões, todos os seus motivos e por fim disse-lhe:
- Conheço bem o teu caso, o teu problema e a amargura, a dor, com que tomaste a decisão de sair de casa com os teus filhos.
Sei bem que fizeste tudo o que estava ao teu alcance para evitar esta decisão, que chegaste até a humilhar-te, para tentar salvar o teu casamento.
Quero dizer-te em primeiro lugar que a Igreja nunca afastou ninguém do seu seio, pelo contrário tenta sempre acolher aqueles que sofrem, aqueles que se sentem sozinhos, aqueles que procuram em Deus a realização plena das suas vidas.
Muitos membros da Igreja não entendem assim, (não os podemos condenar, porque com certeza não têm o conhecimento suficiente do Mistério que é a Igreja), e por isso julgam o que não deviam julgar e tomam como certas, opiniões que afinal são só suas.
Mas não, a Igreja não condena o teu acto, porque o tomaste depois de esgotadas todas as hipóteses de solução, depois de teres tentado até ao limite das tuas forças salvar o Matrimónio que um dia contraíste livremente perante Deus, e que por razões várias acabou por se transformar numa prisão perigosa para ti e para os teus filhos, deixando de ser a realização plena do amor entre homem e mulher que Deus quis e para o qual os criou.
Podes, digo-te eu, participar da Eucaristia, comungar o Corpo e o Sangue de Cristo, confessar-te sempre que precisares e o desejares, apenas com a condição de te manteres casta, sem te unires a outro homem, a não ser que, por razões ponderosas que eu não posso analisar aqui, o Tribunal Eclesiástico analisando as condições em que foi celebrado e vivido o teu Matrimónio, a teu pedido, possa afirmar que o Sacramento do Matrimónio não aconteceu verdadeiramente, e decretar a sua nulidade.
Mas para que não tenhas dúvidas no que te afirmo aqui te leio os cânones do Código de Direito Canónico que confirmam as minhas palavras:
«Cân 1151 – Os conjugues têm o dever e o direito de manter a convivência conjugal, a não ser que uma causa legitima os escuse.
Cân 1153 - § 1. Se um dos conjugues provocar grave perigo da alma ou do corpo para o outro ou para os filhos, ou de algum modo tornar a vida comum demasiado dura, proporciona ao outro causa legítima de separação, quer por decreto do Ordinário do lugar, quer também, se houver perigo na demora, por autoridade própria.
§ 2. Em todos os casos, cessando a causa da separação, deve ser restaurada a vida conjugal em comum, a não ser que a autoridade eclesiástica determine outra coisa.»

Claro que para teres a certeza da bondade da tua decisão, mesmo depois de tomada, deves recorrer à ajuda no discernimento de um sacerdote, ou até mesmo do teu Bispo, que te ajudará a dares os passos certos para conformares a tua decisão com a Doutrina da Igreja.
Mas para além destas instruções que te informo, há muito mais documentos da Igreja que atestam a possibilidade dos separados, por razões como a tua e outras mais, poderem continuar a receber os Sacramentos da Igreja, e entre os quais te cito, a Exortação Apostólica “Familiares consortio”, de João Paulo II, que no ponto 83 diz:
«Motivos diversos, quais incompreensões recíprocas, incapacidade de abertura a relações interpessoais, etc. podem conduzir dolorosamente o matrimónio válido a uma fractura muitas vezes irreparável. Obviamente que a separação deve ser considerada remédio extremo, depois que se tenham demonstrado vãs todas as tentativas razoáveis.
A solidão e outras dificuldades são muitas vezes herança para o cônjuge separado, especialmente se inocente. Em tal caso, a comunidade eclesial deve ajudá-lo mais que nunca; demonstrar-lhe estima, solidariedade, compreensão e ajuda concreta de modo que lhe seja possível conservar a fidelidade mesmo na situação difícil em que se encontra; ajudá-lo a cultivar a exigência do perdão própria do amor cristão e a disponibilidade para retomar eventualmente a vida conjugal anterior.
Análogo é o caso do cônjuge que foi vítima de divórcio, mas que - conhecendo bem a indissolubilidade do vínculo matrimonial válido - não se deixa arrastar para uma nova união, empenhando-se, ao contrário, unicamente no cumprimento dos deveres familiares e na responsabilidade da vida cristã. Em tal caso, o seu exemplo de fidelidade e de coerência cristã assume um valor particular de testemunho diante do mundo e da Igreja, tornando mais necessária ainda, da parte desta, uma acção contínua de amor e de ajuda, sem algum obstáculo à admissão aos sacramentos.»

A Igreja não te condena, portanto, mas ao contrário quer acolher-te, quer ajudar-te a viveres a tua situação dolorosa e na comunhão em Igreja, em comunhão com Cristo, encontrares razões de esperança, de paz e até de alegria.
Lembra-te que é Jesus Cristo Quem nos diz:
«Vinde a mim, todos os que estais cansados e oprimidos, que Eu hei-de aliviar-vos.
Tomai sobre vós o meu jugo e aprendei de mim, porque sou manso e humilde de coração e encontrareis descanso para o vosso espírito.
Pois o meu jugo é suave e o meu fardo é leve.» Mt 11,28-30

Olhou para o sacerdote agradecida e disse-lhe com a voz embargada:
Obrigado Padre, porque me fez sentir acolhida e amada pela Igreja que eu amo.
Sei e percebo que é muito difícil o que a Igreja me pede, mas acredito também que na comunhão e na entreajuda será possível levar a vida digna que sempre quis viver e as circunstâncias não permitiram.
Acredito também que se cair, porque sou pecadora, o perdão de Deus é muito maior que o meu pecado e na Confissão reencontrarei a graça de Deus na minha vida e que ela me dará forças para viver as provações que vou ter de enfrentar.
Mas tenho confiança, tenho esperança, que o amor de Deus me fará sentir que a minha vida tem sentido e é querida por Deus e amada na Igreja e é isso mesmo que quero transmitir aos meus filhos profundamente magoados no seu íntimo.
De pé, o sacerdote abençoou-a, e ela saiu de cabeça erguida da igreja, com a paz no coração, a esperança no olhar, sabendo-se filha de Deus e pedra viva da Igreja.
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Nota:
Esta é uma história inventada, mas que, para além obviamente de uma certa bondade na descrição do problema, sua solução e aceitação, quer chamar a atenção para o facto de que aquilo que se diz e que muitas vezes se toma como certo em relação à Igreja, nem sempre corresponde à realidade.

12 comentários:

Cátia disse...

Ola Amigo Joaquim,

Como tão bem sabes, este é um dos assuntos que me preocupa. É duro quando se percebe que existem tantas mulheres, crianças e até homens a sofrerem em silêncio por abusos e maus tratos de outros. É preciso confiar que o destino pode ser melhor, que Deus não iria querer tal sofrimento e dor aos seus filhos. É preciso muita coragem para sair de casa e recomeçar uma vida. Mas não é impossível, e estou certa que se sentirem essa confiança, esse acolhimento por parte da comunidade em que estão inseridos, será bem mais facil...

Parabens pelo post e pela chamada de atençao. Como te disse, tenho por lá no ticho tambem uma chamada de atençao para os maus tratos... Passa por la.

Beijinho e Abraço em Cristo

joaquim disse...

Olá Cátia

O texto é precisamente, (para além de chamar a atenção para o problema que muitos pretendem não ver), para afirmar que contrariamente ao que se diz por aí, a Igreja dá soluções, não rejeita, nem expulsa ninguém, mas sobretudo acolhe, ajuda e ama.
Assim nós, que somos a Igreja, saibamos fazê-lo, saibamos acolher, ajudar e amar, sem julgamentos mentais ou outros, mas com o amor de Cristo em nós.

Irei lá passar com certeza!

Abraço amigo em Cristo

Maria João disse...

Este texto é muito bom. Convém explicar estes pormenores tão importantes para tantas pessoas que estão a passar por situações idênticas.

Sei o que é a violência doméstica. Não por mim, mas pela minha mãe. A violência doméstica chega sempre às crianças. Pode não ser fisicamente, mas psicologicamente vive-se cada segundo da nossa vida com medo, em pleno inferno. Deixamos de ter confiança naquele que nos gerou. Alertamos cedo demais para uma realidade nua e crua. Uma realidade que quando somos pequenos (tinha 6 anos) ainda não temos de conhecer. Uma realidade que vive longe do mundo que criámos para as nossas bonecas. Uma realidade que nos deixa desconfiados perante a vida e cheios de medo.

É terrível! Este medo e esta desconfiança só desvanesce com a mão de Cristo que nos diz: Vinde a mim, todos os que estais cansados e oprimidos, que Eu hei-de aliviar-vos.
Tomai sobre vós o meu jugo e aprendei de mim, porque sou manso e humilde de coração e encontrareis descanso para o vosso espírito.
Pois o meu jugo é suave e o meu fardo é leve.» Mt 11,28-30


Obviamente que Cristo não quer esse martírio! Obviamente que se pode comungar!

Um divórcio nestas circunstâncias não acontece por situações egoístas. A Igreja foi criada por Cristo. É Mãe e não madrasta. Não ia abandonar estas mulheres.

Podem dizer que, apesar disso, há pessoas da Igreja (e que são Igreja) abandonam essas mulheres (ou homens)... É verdade! Mas, isso acontece por ignorância, por uma fé muito pouco amdurecida e consolidada, por uma fé errada, baseada num deus falso que é tudo menos amor como o Deus Pai Verdadeiro...

Obrigado, Joaquim, por alertares para este problema e explicares tão bem a posição da Igreja perante estas situações...

beijos em Cristo e Maria

PS: Muita força para todos os que estão a passar por situações de violência doméstica. Jesus ajuda-vos! Acreditem! Não vos censura por deixarem um matrimónio assim! Mas, por mais magoadas que estejam, não deixem de rezar pela conversão da pessoa que vos maltrata.

Fá menor disse...

Belíssimo e pertinente texto, meu amigo!
Ainda há tanto desconhecimento, que torna estas pessoas, que já são vítimas sofredoras, a mais sofredoras ainda pela intolerância e até crueldade de ditos cristãos.
A Igreja acolhe, é certo, mas acho que ainda não se fala abertamente destes problemas.
Eu acho que para além de se acolher a pessoa que não teve outro remédio se não o de separar-se por ser vítima de maus tratos físicos ou psicológicos ou outros motivos, como o ser vítima de traição, por exemplo... ou seja, a esta pessoa que é a parte inocente, deveria ser dada oportunidade a que pudesse ver anulado o seu casamento... infelizmente, acho que em muitos casos, nunca essa hipótese terá sido aconselhada por ninguém, penso eu, que também não estou muito por dentro do assunto.
Mas ao menos que nós, Igreja, saibamos acolher estas pessoas.

Abraço muito amigo e bom fim de semana

João Silveira disse...

Este assunto é fundamental, e precisa mesmo de ser esclarecido. Parabéns pelo texto.

Abraço em Cristo

Paulo Costa disse...

Obrigado Joaquim! Há muito que medito sobre esta questão. O teu texto ajudou-me a esclarecer muitas dúvidas e inquietações. Infelizmente, a história que nos contaste nem sempre corresponde à realidade. Por vezes,em alguns casos, tomam-se posições e decisões contrárias ao espírito do Evangelho.

Abraço fraterno em Cristo Jesus.

joaquim disse...

Maria João

Obrigado pelo teu testemunho que me tocou.

Realmente a Igreja tem respostas, nós é que muitas vezes nos deixamos "embarcar" no que os outros dizem.

Abraço amigo em Cristo

Só uma nota para dizer que a Igreja fala em separação, e não em divórcio.

joaquim disse...

Olá Fa

Obrigado pelas tuas palavras.

Todos nós sabemos e dizemos muitas vezes que a Igreja somos nós, mas quando chega a altura de sermos verdadeiramente Igreja, ou seja, de acolhermos e amarmos, somos muitas vezes mais rápidos a julgarmos e a condenarmos.
Nem tudo o que se diz da Igreja é verdade e o desconhecimento é sempre aproveitado pelos detractores da Igreja.

Abraço amigo em Cristo

joaquim disse...

Caro João

Obrigado pela visita.

Sim é preciso esclarecer para que não deixemos levar pela "voz comum", para que não sejamos "maria vai com as outras", e possamos ajudar aqueles/as que precisam e se voltam para a Igreja à espera de um abraço e muitas vezes, por preconceito, por ignorância, esse abraço não lhes é dado.

Abraço amigo em Cristo

joaquim disse...

Caro Paulo

Ainda bem que pude ser útil.

A Igreja tem a Doutrina, mas a Doutrina é sempre assente no amor, pelo que, a Igreja sempre acolhe aqueles/as que a procuram de coração aberto, sobretudo quando se sentem sós no mundo.

Abraço amigo em Cristo

GP disse...

Isto levanta muitas questões para as quais não encontro resposta. Dava para ficar a escrever horas a fio...

Beijo

joaquim disse...

Amiga Graça

Com certeza que sim, mas a intenção do texto era desmontar a ideia préconcebida que a Igreja exclui as pessoas que têm problemas deste tipo e que bem longe disso até lhes apresenta soluções e as acolhe.

Obrigado pela visita

Abraço amigo em Cristo